quarta-feira, março 28, 2007

Sobre "Petit Psaume du Matin", de Josef Nadj e Dominique Mercy, hoje no Teatro Municipal da Guarda, às 21h30

Certas tardes uma cara

A história que vos vou contar é a de dois homens que se encontram em viagem. Melhor: a história que vos vou contar é a de dois homens que se encontram nas memórias que têm das viagens que fizeram. A memória é, ela própria, uma viagem. O encontro com o outro é, em si, uma outra viagem. E os dois homens são extraordinários: o coreógrafo e bailarino Josef Nadj, e o bailarino Dominique Mercy (conhecido entre nós como um dos emblemáticos intérpretes de Pina Bausch). «Petit Psaume du Matin» é a história dessa viagem, em que estes dois homens extraordinários se aproximam e partilham uma intimidade, que é delicada, subtil, sensível. Não é por acaso que uma das características que Josef Nadj atribui à sua criação é a honestidade. Uma qualidade rara nos dias de hoje, mas que se pressente nas comoventes peças que cria. Trabalha com texturas, materiais, cores que aproximam o homem da terra, que aproximam as mãos do barro, e que aproximam a respiração da vida. Há um assombro poético que ecoa em cada gesto, único. Para esta obra, Nadj cita Paul Valéry, mas são tantos os poetas cujas vozes transparecem no silêncio dos corpos que o criador leva à cena. Como Jorge Luís Borges, quando diz (em «Arte Poética»): «Às vezes certas tardes uma cara/ Olha-nos do mais fundo dum espelho/ A arte deve ser como esse espelho/ Que nos revela a nossa própria cara.»


Cláudia Galhós